domingo, dezembro 02, 2007

A sorte protege ou faz-nos audazes?

Dean Cartechini é um vendedor Australiano que, no dia 17 de Junho de 2004 ganhou o prémio máximo do concurso "Deal or No Deal" (cerca de 200,000 dólares australianos ou 120,000 Euros a preços de hoje). A história de Dean serve para ilustrar um padrão de tomada de decisão curioso que se assemelha a decisões que todos nós tomamos na nossa vida quotidiana. A participação de Dean, naquele dia, ficaria marcada por uma sorte invulgar que se traduziu num encaixe financeiro bastante interessante para cerca de uma hora no concurso. Nem todos arriscariam tanto como Dean mas, depois de visualizarem e codificarem todos os episódios do "Deal or no Deal" transmitidos entre 2002 e Janeiro de 2007 na Holanda (51 episódios), EUA (53) e Alemanha (47), economistas holandeses e norte-americanos descobriram, nas decisões de mais de 150 concorrentes diferentes, padrões peculiares na tomada de decisão.



A ideia do concurso é muito simples. Cada concorrente inicia o programa com 26 malas à sua frente, cada uma contendo uma quantia de dinheiro que varia entre 1 cêntimo e um valor bastante elevado (1 milhão de euros na Holanda, por exemplo). O apresentador pede ao concorrente que escolha uma mala. A partir deste momento o valor, ainda que desconhecido, dentro da mala é do concorrente. Depois o concorrente escolhe 6 das restantes malas que são então abertas (revelando os prémios que o concorrente não poderá ganhar). Após esta operação um "banco virtual" oferece um valor ao concorrente (que vai sendo adaptado de acordo com o desenrolar do programa). O concorrente pode aceitar ou recusar a oferta e, neste segundo caso, terá de escolher mais 5 malas para abrir. O processo repete-se iterativamente até ao final do concurso que apenas ocorre quando (1) o concorrente aceita uma oferta do banco ou (2) fica com a sua mala e o valor nela contido (no caso de rejeitar todas as ofertas).

Thierry Post, professor de finanças na Universidade Erasmus em Roterdão (Holanda), decidiu estudar este concurso que, segundo ele e os seus co-autores, "se parece mais com uma experiência económica do que com um concurso de TV" (Post et al. 2008). Os resultados da análise são difíceis de compatibilizar com a teoria da utilidade esperada.

Primeiro, muitos destes jogadores assumem níveis de risco anormalmente elevados. Muitas das decisões observadas pressupõe um "coeficiente relativo de aversão ao risco", uma medida utilizada pelos economistas como indicador da nossa tendência para evitarmos (ou não) o risco, que se aproxima de zero - isto é uma surpreendente insensibilidade ao risco financeior por parte dos concorrentes.

Mas esta não é a única descoberta importante do artigo que Post redigiu em conjunto com Martijn Van Den Assem, Guido Baltussen e Richard Thaler (Univ. Chicago).

Os surpreendentes resultados e o contexto quase experimental (mas bem real) do concurso valeram à equipa de investigadores uma publicação na prestigiada revista norte-americana American Economic Review (a ser publicado em 2008).

Interessante é o facto de concorrentes como Dean Cartechini, além de apresentarem um grau muito baixo de aversão ao risco, demonstrarem padrões previsíveis de alteração, com o decorrer do jogo, da sua aversão ao risco. Não é nova a ideia de que as nossas decisões se baseiam, frequentemente, em preferências construídas localmente, baseadas em pontos de referência, e não num padrão comportamental e de preferências estável para cada indivíduo. O que é surpreendente é que isso se aplique a decisões com implicações financeiras elevadas (para a maioria dos concorrentes receber 100,000 Euros, ou 50,000 é um facto relevante na sua riqueza) e aparentemente tão simples (escolha entre aceitar ou não uma oferta, por vezes apenas com um simples sorteio entre dois valores em jogo) e, acima de tudo, à preferência por maior ou menor risco.

Aparentemente a sorte ou azar das primeiras jogadas ditam, de forma determinante, as percepções de risco de concorrentes como o Dean e, consequentemente, as suas decisões. Os autores demonstram que (1) concorrentes azarados que abrem malas com valores muito elevados nas primeiras decisões ou (2) concorrentes sortudos que abrem apenas malas com valores muito baixos tendem, ambos, a tornar-se progressivamente menos avessos ao risco. Isto é os concorrentes mais afortunados e os mais azarados tendem a tomar decisões progressivamente mais arriscadas e que, em muitos casos, parecem trazer consigo uma probabilidade elevada de que o concorrente saia eventualmente lesado dessa escolha.

Os autores descrevem o interessante caso de Susanne, uma concorrente alemã a quem destino reservava, a 23 de Agosto de 2006, um episódio de boa ventura. Susanne começa por eliminar, até à sexta ronda, praticamente todas as malas com valores pequenos, o que terá contribuído para a sua confiança numa participação afortunada. Na última decisão Susanne parecia "sofrer" já de um efeito que os autores denominaram "house-money". Sem pensar duas vezes, não hesita em rejeitar uma oferta do banco de 125,000 euros, exactamente o valor esperado das duas malas restantes com 100,000 e 150,000 euros. Acabou por ser compensada pela sua audácia e levar para casa os 150,000 euros.

Menos sorte teve Frank que, após uma série de decisões azaradas, na sétima jogada elimina a última mala que continha um valor elevado (500,000 euros) fazendo o seu prémio esperado cair de pouco mais de 100,000 Euros para cerca de 2,500! Mas o seu fado não terminaria aqui. Desanimado, desiludido e quem sabe mesmo irritado com o seu azar, Frank entra numa espiral de decisões arriscadas, aceitando lotarias claramente injustas. Na última jogada tem o pobre Frank de decidir entre uma oferta do banco de 6,000 Euros ou arriscar abrindo a última mala (revelando o conteúdo perdido) e ficar com o conteúdo da mala que já se encontrava em sua posse. Os valores em jogo nas duas malas eram 10 e 10,000 euros. Frank decidiu, surpreendentemenete, arriscar e abrir a última mala apenas para, como tinha sido seu apanágio desde o início do programa, perder mais um prémio, desta feita de 10,000 euros, saindo do estúdio com mais 10 Euros do que tinha entrado!

Este tipo de reviravoltas e decisões que tanto nos levam de momentos de extrema sorte como elevado infortúnio são frequentes no nosso dia-a-dia. Não é pois de espantar que o estudo tenha despertado o interesse de inúmeros economistas e psicólogos mas também dos media, sobretudo norte-americanos e holandeses. As conclusões estão longe de ser óbvias e as implicações destes padrões comportamentais irão certamente muito além do comportamento em concursos televisivos. Decisões acerca de onde investir o nosso dinheiro, opções de carreira e poupança e saúde envolvem, frequentemente, contextos que podem, ainda que de forma subtil, aproximar-se dos dilemas vividos pelos concorrentes no "Deal or no Deal". Já diz o provérbio que dá o título a este post que a sorte proteje os audazes. Mas será que estaremos numa proverbial falácia do post hoc? Pelos vistos mais do que aqueles que são audazes serem bafejados pela sorte, parece que aqueles que são bafejados pela sorte tendem a ser audazes. O problema é que o azar também nos torna audazes. Infelizmente, neste segundo cenário, são demasiadas as vezes em que a audácia se começa a confundir com desespero, um padrão captado por um outro marco da sabedoria popular: perdido por 100, perdido por 1000!

Algumas referências interessantes:

- Deal or No Deal? Decision Making under Risk in a Large-Payoff Game Show (SSRN)
- artigo no Wall Street Journal - 12/01/2006
- entrevista na National Public Radio (EUA)
- opinião de Stephen Dubner no Freaknonomics Blog (New York Times)
- Resumo no Wall Street Journal Classroom Edition de Maio 2006
- Descrição do "Deal or no Deal" norte-americano (prémio max=$1,000,000)
- Descrição do "Deal or no Deal" norte-americano (prémio max=$1,000,000)
- target="blank">Descrição do "Miljoenenjacht" - Deal or no Deal Holandês (prémio max= EUR 5,000,000)
- Descrição do "Miljoenenjacht" - Deal or no Deal Alemão (prémio max= EUR 2,000,000)
- Descrição do "Topa ou não topa" - Deal or no Deal Brasileiro (prémio max= R$ 1,000,000 (cerca de EUR 380,000)

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